24 setembro 2009

a menina dos fósforos

Disseram-me que as pessoas dividem-se em dois tipos: os fósforos e as velas.
Disseram-me também para preferir a chama constante de uma vela, ao clarão fugaz de um fósforo.
Tenho um problema: gosto de fósforos e de velas.

O acto de acender um fósforo, aquele som do raspar, o cheiro, o poder de dar à luz com um simples gesto, ainda por cima baratinho, dá-me prazer. Não se brinca com o fogo, ralhavam os meus pais. E ainda me ralham. Porque eu gosto muito das pessoas fósforo. Incendeiam e incendeiam-me. É um problema.

A presença de uma vela encanta-me. À média luz pode não se ver a comida que se tem à mesa para jantar e confundirmos a realidade inebriados pelo "ambiance", como diz a F.
Mas as velas ardem até ao fim, como escreve Sándor Márai na sua obra-prima.

As pessoas que são velas são constantes. Têm sempre os mesmos pés, apesar de caminharem em direcções várias; têm sempre a mesma cara, mesmo que assumam diferentes faces perante as vidas que vivem; não escondem a alma, ainda que vivam incoerentes.
As pessoas que são velas têm sempre o coração do lado esquerdo, seja ele calhau ou diamante.

Gosto das pessoas fósforo e gosto das pessoas vela. Gosto de pensar que ardem umas com as outras e que todos os fósforos podem um dia acender a vela que há na gaveta lá de casa para quando falta a electricidade. Quando um dia lhes vier à lembrança a luz da alma.

22 setembro 2009

fui à terra (e uma antevisão de Novembro próximo)

Nos últimos dias fiquei sem argumentos, sem falas, sem bons diálogos. Perdi o rasto à minha personagem. Fiquei sem guião. Quando muito fui figurante e experimentei que quando nem papel secundário temos, tudo o que se observa, escuta e agarra, sente-se mais, dói mais. E até se chora.

Fui à terra. Foi o que aconteceu.

Quando vou à terra, no caso a minha cidade B, Coimbra, durmo numa freguesia rural, que está para a cidade do Mondego como Carnide está para Lisboa. Ali faço sempre duas coisas: visito o cemitério e os poucos familiares que me restam.
Fico sempre em paz por falar com os mortos e abraçar os vivos. O que na minha família é quase a mesma coisa, pois a memória cultiva-se mais que o presente.

A festa da minha família não é o Natal, esse é sempre passado em sossego, sem grandes ajuntamentos familiares e sem grandes consumos calóricos. A família é tão pequena que se divide pelas casas e mini-famílias que dela degeneraram.
A festa da minha família é a festa dos mortos, mas nada tem de mórbido, de tão natural que é.

O feriado de 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, é o dia em que esquecemos as dietas, comemos enchidos, mista grelhada com carne de porco a dar nas vistas, esquecemos o colesterol e a hipertensão que matou a maioria, fazemos um relatório sumário do que andamos a fazer na vida e acaba sempre com muitas castanhas (cruas para mim, se fazem favor) e muita jurupiga e vinho tinto. A política vem sempre à baila, claro, e é nessa altura que me ponho a par dos programas pólis e dos novos projectos para Coimbra. Com o adro da igreja da paróquia ao mesmo nível do Mosteiro de Santa Clara a Velha, que a minha família não tem muita noção da dimensão das coisas.

O dia começa três dias antes com a encomenda dos arranjos florais para as campas. A decisão entre antúrios e orquídeas é sempre muito pesada e a minha mãe exige ver, religiosamente, o portfólio das floristas. Depois é uma agenda complicada de gerir. Horas para ir buscar os arranjos, horas para colocar os arranjos e acender as velas que alumiam as almas. As nossas e as dos nossos mortos. E as horas em que começamos a fazer as brasas para o churrasco. E depois lá vamos em romaria juntarmo-nos a todas as outras famílias que no cemitério se encontram para celebrar. É mesmo uma celebração, das melhores que conheço. Abraços, risos, lágrimas, e a inevitável passagem pelas campas dos outros mortos, de pessoas que nunca conheci mas que eram "raparigas e rapazes da minha idade" como dizem a minha mãe e os meus tios.

É assim desde os meus sete anos. No dia seguinte é o meu aniversário. Quis o destino que eu nascesse no Dia dos Fiéis Defuntos. Eu sempre achei muito bem. Tinha lógica pois então. Que outro dia para eu nascer?

Neste último fim-de-semana, pensei nisto tudo. À memória dos Novembros passados, conclui que a vida tem uma lógica que às vezes só a morte nos faz entender. Calei-me por isso. Falei com os mortos em silêncio, pois eles já sabem tudo, muito mais do que até ao último suspiro nós saberemos. O mistério da vida é isso.

Fui à terra. Fui ao estádio, vi os cachecóis pretos da Académica, cantei a Briosa, vi os cachecóis azuis do Belenenses, lembrei-me de Lisboa, cidade A. Lembrei-me que o futebol não é assim uma coisa tão má, como venho dizendo nos últimos tempos.
Fui às compras, sem comprar. Lembrei-me que comprar trapos e pechisbeque não é assim uma vingança tão boa, como durante anos servi fria.
Fui à terra e fiquei sossegada. Nem um gin "éfe érre á", nem nada. Nem uma saída à noite para ver os rapazes giros de Farmácia (eu sempre achei que os rapazes do curso de Farmácia eram os mais giros, não me perguntem porquê). Neste fim-de-semana estive velha para isso. Lembrei-me que sentir-me velha para certas coisas, às vezes, não é de tótó.

Fui à terra e fiquei sem guião. O mistério da vida é não decorar papéis. Basta lembrar.

16 setembro 2009

o melhor ainda é não saber

Nos últimos dias chegaram a este blogue via pesquisa no Google várias pessoas que buscam a resposta para esta pergunta: "como deixar de gostar de alguém". A culpa é deste post que escrevi. Entristece-me que vão sem resposta, mas não posso ajudar. É que não sei mesmo, e eu até tenho a mania que sei umas coisas.

Mas o amor, e o Sitemeter disso me dá conta mais uma vez, é a mais velha preocupação do mundo. Transversal a todas as idades, opções sexuais, estatuto económico, situação geográfica. Alguém duvida?
Falo, obviamente, do amor carnal, do amor romântico, do amor entre dois seres com a potencialidade de troca de fluidos, porque só esse é comum. O amor no sentido genérico, extensivo aos laços familiares aos amigos, aos pobres e aos fracos, o amor genuíno e puro, sabemos, não interessa a todos... Mas o amor romântico? Até as bestas e os psicopatas o sentem, porque é hormonal, visceral. Dir-me-ão que isso já pode ser uma utilização abusiva da palavra amor. É verdade, mas quem o sente, seja lá quem for, não sabe isso nem quer saber.

Havia um bêbedo numa terrinha que conheço perdida no interior do distrito de Coimbra que andava sempre a dizer: "O importante é o amor". E ele tinha razão.
Venham as catástrofes naturais, as guerras, a crise económica, o desemprego, as eleições, a carreira, o carro topo de gama, a barraca da Cova da Moura, o duplex... O importante é... vamos fazer coro: o amor.
Estou convencida que mesmo nas mais duras provas a que a condição humana está sujeita, desde a cama do hospital, ao acampamento dos refugiados, há-de ser o amor que tece as conversas e as preocupações.

Imagino assim, por exemplo, uma conversa entre dois homens num porão de um barco cheio de imigrantes famintos de uma vida melhor, sujos, com frio, com fome... Um diz: "sabes há uma mulher...". Pronto. As conversas começam sempre com isto "há uma mulher" ou "há um homem" e as inevitáveis: não sei se gosta de mim, achas que gosta?, o que é que eu faço?, porque é que ela não gosta de mim, não percebo aquela mulher, não percebo aquele homem.

Ninguém percebe o amor. Essa é a verdade.

Uma vez escrevi esta dedicatória a uma pessoa que me desasossegou: "O melhor ainda é não saber. Nada." Escrevi-a num livro que se chama Um amor feliz, do David Mourão Ferreira. Um dos meus livros.
Ninguém sabe como deixar de gostar de alguém, mas toda a gente sabe como é gostar. Isso devia bastar. O resto vem por si. O melhor ainda é não saber. Nada.

mais uma birra

Acabem com os restaurantes com música ao vivo já! Já não há sossego para jantar? Ontem tive de estar aos berros para ouvir e para me fazer ouvir. E o senhor ainda pedia para cantarmos, bailarmos e desfazermo-nos em palmas. Grrrrrrrrrrr Pelo menos baixem o volume, se fazem favor. Valeu, como sempre, a companhia.

14 setembro 2009

cidade sentida

“ Ó tá nevoêrro, ó robarem a Trróia ! “
"Má fea qum batelão da Secil !"

in dialecto sadino mais recente
Fonte: um setubalense nascido e criado (obrigada BJ)



Tenho com Setúbal uma relação parecida com a que tenho com Almada, sou-lhes filha por empréstimo - uma foi o meu distrito, outra o meu concelho - mas nunca as considerei cidades na verdadeira acepção sentida da palavra, talvez porque durante anos vivi sempre o mais à beirinha possível do Tejo, pulando diariamente para Lisboa.

Antes que comecem a insultar-me, calma; Setúbal e Almada são cidades dignas desse nome, com vida e cultura próprias, e com a maravilhosa particularidade de partilharem as praias da Costa Azul (mesmo que agora se diga que robarem Trrroia).

Mas as cidades são para ser vividas ou distantes. Ou se vivem intensamente, ou estão longe de nós e queremos ir visitá-las, cheirá-las e imaginar como seria lá morar. Ora, Setúbal e Almada sempre estiveram demasiado perto e eu nunca as vivi como minhas. Não foram nunca cidades pensadas por mim enquanto tal.
Setúbal foi sempre o sítio ao lado, desde criança uma passagem para o Portinho da Arrábida ou para Tróia, ou um spot gastronómico onde se come choco frrrito e bom peixe fresco. Setúbal é, no fundo, uma cidade aonde tenho ido sem a fazer cidade e sem me fazer a ela enquanto cidade.

Lisboa sempre esteve perto. Vivo dentro dela. Vivi por duas vezes antes desta em permanente competição com a Caparica. Mas nunca nem hoje a senti aqui. É um lugar que está para além da sua condição terrena e existe antes de tudo na minha cabeça.
Aquilo que verdadeiramente amamos temos de o sentir longe, mesmo que cheguemos lá em cinco minutos. Só a sensação do longe nos faz querer estar sempre à beira do salto, ainda que saibamos exactamente onde vamos cair.

10 setembro 2009

Lisboa hoje, só hoje

Hoje apetecia-me que a cidade dormisse cedo, no sofá, em frente à TV, num estado de imbecilidade e dormência, sem necessidade de servir copos, de sacudir-se ao som do DJ e da fusão mais recente, sem ganas de se colocar na primeira fila para a estreia da peça, do filme ao ar livre, da festa de inauguração daquele novo sítio com vista do miradouro. Hoje queria que Lisboa nem sequer se pudesse ver a si mesma, corresse as cortinas com desejo de privacidade, fosse católica com vergonha dos seus pecados, fosse púdica nos seus afectos, sem olhares, nem seduções, nem comida fora de horas. Hoje queria que Lisboa nem sequer comesse e fosse de castigo para a cama. Quem dorme janta. Hoje queria que Lisboa fosse uma aldeia entalada na serra, sem equipamentos nem agentes culturais. Hoje queria que Lisboa fosse feia, tão feia que nem interessante podia ser. E que recolhesse a roupa dos estendais, tapasse os azulejos com panos pretos e sofresse um apagão. E às escuras eu dormiria com ela.

puro prazer

Quando alguém ama sapatos desta maneira só pode ter os pés no chão.

A Lolita está de volta e mostra-nos o seu vício, o seu luxo e a sua paixão com o mundo a seus pés

09 setembro 2009

Inimigos Públicos, onde está a história?

"Inimigos Públicos", o mais recente filme protagonizado por Johnny Depp, com realização de Michael Mann, está muito bem filmado mas quando saí da sala a primeira coisa que me ocorreu dizer, e de oca que me senti, foi: Onde está a história? A película vive da interpretação de Johnny Depp, excelente como sempre, e provavelmente a mais contida da sua carreira, que encarna John Dillinger, o assaltante de bancos que acabou por se tornar quase um herói na América dos anos da Depressão, pelo carisma que deixava no rasto de cada crime. O bom ladrão, cheio de estilo, lata e bom gosto, reparte a sua devoção ao crime, acima das convenções e políticas em vigor que despreza, com um amor intenso a uma mulher - Billie Frechette, superiormente interpretada por Marion Cotillard (oscarizada pelo papel de Edith Piaf em 2007).
Só a qualidade dos dois actores salva o filme cujo argumento é de grande inconsistência. Tem momentos belíssimos, é certo, - como a cena em que J. Dilllinger espectador de cinema se confronta com Clark Gable no grande ecrã a fazer de gangster no filme "Manhattan Melodrama", ou a cena em que assiste a Billie ser presa -, mas são apenas isso: bons momentos de filme, e tem alguns, mas desligados entre si, sem diálogos e uma trama narrativa que imprima intensidade dramática à obra.
Quem sai mais prejudicado pela falta de um bom argumento é a personagem de Christian Bale, o agente especial do FBI Melvin Purvis, que acabou por se suicidar um ano depois de finalmente ter posto fim à carreira de J. Dillinger. Ao longo do filme a personagem de Bale não adquire a solidez e a densidade emocional necessárias para fazer-nos sentir a angústia que o atravessa enquanto inimigo público de Dillinger, dividido que está entre o sentido de dever e a lealdade a um FBI investido de novas e mais duras regras no combate ao crime com as quais já nem sabe se se identifica. E esse é talvez o elo mais fraco e o que provoca mais fragilidade no filme.
Nem história de amor, nem história de Dillinger, nem história de gangsters. "Inimigos Públicos" só funciona porque andamos todos a ver filmes há tanto tempo, que já sabemos onde colocar os pontos nos is que faltam aos argumentos. E o Johnny Depp, claro, consegue sempre mover palavras e palavras de contentamento.

08 setembro 2009

gula

Acabaram-se as dietas milagrosas, o Dr. Oz e as lágrimas nos programas da Ophra. Não mais teremos as inestéticas "asinhas do amor" (o nome até é querido, com um travo a luxúria), nem barriguitas. A minha amiga R. descobriu a cura para o excesso de peso. Ela está absolutamente convencida que se comermos às escondidas, sem ninguém ver, não engordamos. Mas atenção, ninguém pode sequer sonhar que comemos. Se devorámos o pacote de bolachas, é necessário repô-lo de imediato. Se o resto do bacalhau com natas foi à vida às três da manhã, deve dizer-se que estava podre e teve de ir para o lixo. Se o bolo de chocolate desparece misteriosamnete do frigorífico, levámos para o trabalho para dar aos colegas coitadinhos. A R. é magra e come às escondidas.

07 setembro 2009

FCSH

Aos 15 anos decidi que ia entrar na FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, para fazer a licenciatura em Comunicação Social. Um dia fiquei deslumbrada com umas cavalariças que serviam de salas de aula. No telhado uns tipos apanhavam sol. Entendi que ali seria feliz e me formaria em grande estilo para ser a melhor jornalista do mundo e contar estórias nunca antes sabidas. Aos 23, disseram-me, saí comunicóloga e não jornalista. Michel Foucault, Walter Benjamin, Gilles Deleuze e tantos outros, semióticas, teorias da imagem e da representação, hermenêuticas e teorias políticas, tinham-me mostrado que ser jornalista era um pormenor. O curso serviu para alargar a minha visão medíocre, para entender que o mundo comunica desde as pedras da calçada ao vendedor de castanhas, e os média são apenas um dos pontos de passagem. E eu ouvi a FCSH a falar-me assim do fundo das cavalariças: Minha amiga agora é contigo. Entendi a mensagem logo nos primeiros tempos. Entendi-a cedo demais. Ao segundo ano virei as costas parcialmente à FCSH e dediquei-me à rádio. A rádio era como um amante, a tempo (quase) inteiro. Viciava-me e a FCSH não. Da rádio saí com a sensação de um dia voltar. Da FCSH saí com um diploma (e ainda estou para saber como). Maldita melancolia. Saudades da FCSH. Saudades da rádio.

deixar de gostar de alguém (oração)

Acontece. Custa. É como se uma parte nossa, à qual nos afeiçoámos com devoção, ficasse de repente para trás. E dizemos não, e ainda lutamos por ir buscá-la. Porque nos ficava bem, porque era só nossa, porque compunha-nos. São células inteiras de vazio. Nada é tão duro como sentir desfazer-se uma auto-imagem. E é bom que corram as lágrimas, ainda que secas. Chorar não é para todos. De repente deixamos de gostar de alguém. Já nem interessa se esse alguém ainda gosta de nós ou não, é completamente irrelevante. Um dia havemos de sair da idade emocional do liceu. Um dia havemos de ser inteiros e reunir todos os bocados que ficam para trás. Mas isso também não é para todos. Será para mim. Ámen.

04 setembro 2009

festivais na moda

Na última edição do Indie, o festival de cinema com maior número de espectadores na cidade, logo seguido pelo Doc, creio, percebeu-se que os festivais de cinema estão na moda. De tal forma que são já uma marca da cidade. Contando por alto, são pelo menos dez os festivais que se realizam em Lisboa. O Motelx, a decorrer até domingo no S. Jorge, vai na terceira edição e, a avaliar pelo que tenho presenciado, não me espanta que este ano suba nas audiências.
O sucesso desses eventos resulta numa maior eficácia dos mecanismos de divulgação, na qualidade da programação e, factor primordial, dirigem-se a nichos de mercado, captando a atenção de vários públicos. Do cinema independente, ao cinema de animação (Monstra), à Mostra de Cinema Brasileiro e à Festa do Cinema Francês, e de expressão alemã (Kino), passando pelo documentário (Doc, Panorama), e pelo gay e lésbico (Queer), os festivais de cinema têm de facto tido um papel inegável na criação de novos públicos na cidade.
Claro que a palavra moda, sobretudo se associada ao cinema de cariz menos comercial, parece causar algum desconforto nos espectadores assíduos face a uma eventual perda da identidade alternativa. Falo daquele público de primeira hora, dos verdadeiros amantes de cinema, do espectador que se senta desde a primeira edição na sala meio vazia para assistir a filmes que não vê nos complexos comerciais. A esses pertence a paixão pelo cinema no estado mais puro. São eles que ajudam a que os programadores não desistam, a que as entidades oficiais não fechem a porta aos apoios, a que os patrocinadores surjam numa época de crise.
Com o tempo - e os bons eventos culturais demoram tempo a consolidar-se, não são imediatos, e por isso se tornam marcas na oferta cultural da cidade (o Indie começou com pouco mais de mil e hoje ultrapassa os 40 mil espectadores, por exemplo) - os festivais de cinema ganham território. Aos espectadores primeiros seguem-se os segundos e os terceiros e os quartos que nem sabem bem ao que vão, mas ouviram ou leram que é giro, saem da casca e atrevem-se a descobrir novos espaços e novas linguagens.
Ainda ontem, no S. Jorge, um miúdo com pouco mais de vinte anos dizia que nunca tinha ido ao S. Jorge, mas tinha ouvido dizer que era "muito louco" e que o Motelx era fixe. E isto não é mau. Eu acho até que é muito bom. Um vizinho do meu amigo, com mais de 40 anos, cinéfilo via DVD, foi pelo primeira vez a um festival para saber como era e só perguntava em que dia ia lá o John Landis, de quem é fã e vem este ano ao Motelx.
Isto é mesmo muito bom. Isto são novos públicos. E se a publicidade, um certo sururu social e nocturno, com uns laivos cor-de-rosa, umas caras conhecidas e umas festas e muitos flashes acenderem paixões cinematográficas, seja.
No Indie ouvi alguém dizer: "Isto está a ficar um bocadinho morangos com açúcar....". Para mim, desde que as fitas sejam boas e a cidade mexa, só não vale a pena é ter amargos de boca. Precisamos de açúcar, só não pecisamos é de eventos à pressão, feitos com corantes e fermento às colheradas.

03 setembro 2009

ainda os homens feios

Gostar de um homem feio é uma tentação. Um estado de exibicionismo feminino. Achamos que somos mais belas quando mostramos sem vergonha ao mundo a capacidade de ver a beleza numa face masculina menos consensual. Basta um elemento bonito que se destaque no rosto: uns olhos expressivos, o nariz perfeito, os lábios carnudos, as sobrancelhas carregadas de ciúme, o queixo com covinha, o cabelo à McDreamy, um sorriso safado. Um destes centímetros de carne apenas pode fazer a diferença e servir de argumento para empenharmos os trejeitos mais sedutores que temos à mão. A voz de bronze e a inteligência emocional completam o quadro. E é verdade que também não podem ser demasiado bonzinhos.

o dilema das bonecas russas

A técnica do encaixe social leva-nos a viver acima das nossas possibilidades afectivas. Queremos encaixar no gabinete, na festa de casamento, no quarto da maternidade, na adopção, na relação extra-conjugal, na reunião de pais, no divórcio amigável, no divórcio à estalada, nas calças 36, nos sapatos 37, na revista rosa, no partido do poder, no partido do contra-poder, na inauguração, no namoro, no caso, no affair, na queca de uma noite, na relação para toda a vida, na abstenção eleitoral, na defesa de causas, no condomínio, no bairro histórico, na monovolume, no fiat 500, no Metro, no comboio, nas férias no Algarve, nos museus lá fora, no yoga, no reiki, na filosofia, no liberalismo económico, no Estado providencial, nos blogues, no twitter, no facebook, na recusa das novas tecnologias. Queremos encaixar. Metermo-nos dentro de alguma coisa e sentirmos que o assunto está arrumado. Mas a vida é como as bonecas russas, têm um sistema que desenrosca, salta a tampa e vêm todas cá para fora. Cada uma por si. E talvez mais felizes. E não necessariamente incompletas.

01 setembro 2009

gosto de homens feios

Acabam de me provocar via telefone. Estás muito lamechas. Tudo porque escrevi um post sobre o valor dos amigos de infância. Sinceramente já escrevi coisas mais lamechas, o que num blogue que se chama Estado Afectivo é muito provável de acontecer. Assim, para repor os níveis resolvi fazer um post sobre homens. Apenas para dizer que este é um post sobre homens e nada lamechas. Gosto de homens feios, daquele feio muito bonito, mas tão bonito que desejaria que fossem homens bonitos para eu os achar feios. Perceberam? Pelo menos não é lamechas.

geração de 70

O melhor dos amigos de infância é que nos fazem felizes.
Assemelho o encontro com um amigo de infância que já não via há muito tempo à sensação que experimento quando olho para fotografias antigas e acho que afinal não estou assim tão mal no retrato como pensava na altura. Nunca vos aconteceu?
Os amigos de infância guardam de nós imagens, acções, atitudes, posturas e ideais que não fazíamos sequer ideia que naqueles tempos fossem capazes de captar. O quê? Mas tu tinhas essa ideia de mim? Eu era mesmo assim? Mas tu lembras-te? Como se aos nove, dez, onze ou doze anos seja impossível ter a maturidade de fixar o outro para além dos jeans elásticos e coçados, dos ténis da Nike brancos de lona com o símbolo azul turquesa. Na verdade, em tempo real, não se tem essa capacidade. Não conscientemente. No entanto, em nenhuma outra fase da vida, como na infância e na adolescência, somos máquinas tão perfeitas de armazenamento de factos e imagens dos outros. Sem edição, sem censura, sem perdão.
Depois, na idade adulta esses dados vêm-nos à memória, com legendas e comentários, e uma nitidez incrível.
Se é verdade que é nos amigos que nos revemos, que são eles o nosso espelho mais credível, serão os da infância os mais capazes de nos devolver a auto-estima, o reflexo das nossas melhores qualidades, e até dos defeitos que acarinhamos, porque não sendo pecados graves são coisas cá muito nossas e pronto. É sempre uma surpresa e é sempre comovente quando alguém com quem andei de bicicleta, a jogar ao bate pé, na escola ou nos escuteiros, se lembra de como eu era selectiva nas amizades, de como tinha a mania de pedir coca-cola com gelo e limão e mandar para trás se não vinha assim, de como gostava de organizar coisas e de dar sempre a minha opinião, de falar de ovnis, Deus e almas de outro mundo, de como me passava com as injustiças de nariz no ar, dos joelhos tortos que ainda tenho (desgraça), das birras. De tanta coisa. E a mim acontece o mesmo. Quando reencontro um amigo de criança, surpreendo-me sempre por me lembrar de coisas que na altura me passaram completamente despercebidas, e faço questão de dizê-las. Porque os outros merecem que lhes lembremos que a sua vida não passou em branco para nós. Somos tão nós em miúdos que vale a pena ainda sermos nós em adultos, com uns inevitáveis e desejáveis arranjos aqui e ali de sofisticação e reciclagem do que não importa. Talvez a amizade seja a melhor forma de nos recuperarmos. Talvez seja a mais genuína segunda oportunidade que a vida nos oferece.

normal, portanto

Na esplanada delicio-me com a normalidade dos meus amigos.

Ontei sonhei com o Pedro Mexia. O quê? E era lindo e dava-me beijos. Está bem. A minha amiga está bem de saúde e recomenda-se. A sério.
Esta semana acabei com o meu namorado. E eu fiquei assim a saber, finalmente, aquilo que sempre tinha supeitado: O meu amigo é gay. Fiquei feliz.
O que é feito dos homens de verdade? Só vejo gays! Pois amiga, os homens gay também são de verdade, e sempre são menos uns a dar-nos chatices. Mas eu compreendo-a.
Tenho um amigo que não bebia álcool, mas depois de ver o filme 'Sideways' decidiu que ia gostar de vinho. Agora é um perito e tem uma garrafeira espectacular. Abençoado seja o amigo do meu amigo. Ainda hei-de conhecer essa garrafeira.
Sonhei que em minha casa viviam mais dois casais e duas crianças. Psicoterapeutas no serviço nacional de saúde precisam-se. Estará isso nalgum programa eleitoral? A mais de 90 euros a consulta, são poucos os portugueses que se conseguirão entender a si próprios.
Lisboa está cheia de malucos. Opinião generalizada.
Este Agosto esteve um tempo fantástico. Idem.
É tão bom regressar a Lisboa. Disse eu.

E assim vai o mundo. Não está mal de todo.