22 setembro 2009

fui à terra (e uma antevisão de Novembro próximo)

Nos últimos dias fiquei sem argumentos, sem falas, sem bons diálogos. Perdi o rasto à minha personagem. Fiquei sem guião. Quando muito fui figurante e experimentei que quando nem papel secundário temos, tudo o que se observa, escuta e agarra, sente-se mais, dói mais. E até se chora.

Fui à terra. Foi o que aconteceu.

Quando vou à terra, no caso a minha cidade B, Coimbra, durmo numa freguesia rural, que está para a cidade do Mondego como Carnide está para Lisboa. Ali faço sempre duas coisas: visito o cemitério e os poucos familiares que me restam.
Fico sempre em paz por falar com os mortos e abraçar os vivos. O que na minha família é quase a mesma coisa, pois a memória cultiva-se mais que o presente.

A festa da minha família não é o Natal, esse é sempre passado em sossego, sem grandes ajuntamentos familiares e sem grandes consumos calóricos. A família é tão pequena que se divide pelas casas e mini-famílias que dela degeneraram.
A festa da minha família é a festa dos mortos, mas nada tem de mórbido, de tão natural que é.

O feriado de 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, é o dia em que esquecemos as dietas, comemos enchidos, mista grelhada com carne de porco a dar nas vistas, esquecemos o colesterol e a hipertensão que matou a maioria, fazemos um relatório sumário do que andamos a fazer na vida e acaba sempre com muitas castanhas (cruas para mim, se fazem favor) e muita jurupiga e vinho tinto. A política vem sempre à baila, claro, e é nessa altura que me ponho a par dos programas pólis e dos novos projectos para Coimbra. Com o adro da igreja da paróquia ao mesmo nível do Mosteiro de Santa Clara a Velha, que a minha família não tem muita noção da dimensão das coisas.

O dia começa três dias antes com a encomenda dos arranjos florais para as campas. A decisão entre antúrios e orquídeas é sempre muito pesada e a minha mãe exige ver, religiosamente, o portfólio das floristas. Depois é uma agenda complicada de gerir. Horas para ir buscar os arranjos, horas para colocar os arranjos e acender as velas que alumiam as almas. As nossas e as dos nossos mortos. E as horas em que começamos a fazer as brasas para o churrasco. E depois lá vamos em romaria juntarmo-nos a todas as outras famílias que no cemitério se encontram para celebrar. É mesmo uma celebração, das melhores que conheço. Abraços, risos, lágrimas, e a inevitável passagem pelas campas dos outros mortos, de pessoas que nunca conheci mas que eram "raparigas e rapazes da minha idade" como dizem a minha mãe e os meus tios.

É assim desde os meus sete anos. No dia seguinte é o meu aniversário. Quis o destino que eu nascesse no Dia dos Fiéis Defuntos. Eu sempre achei muito bem. Tinha lógica pois então. Que outro dia para eu nascer?

Neste último fim-de-semana, pensei nisto tudo. À memória dos Novembros passados, conclui que a vida tem uma lógica que às vezes só a morte nos faz entender. Calei-me por isso. Falei com os mortos em silêncio, pois eles já sabem tudo, muito mais do que até ao último suspiro nós saberemos. O mistério da vida é isso.

Fui à terra. Fui ao estádio, vi os cachecóis pretos da Académica, cantei a Briosa, vi os cachecóis azuis do Belenenses, lembrei-me de Lisboa, cidade A. Lembrei-me que o futebol não é assim uma coisa tão má, como venho dizendo nos últimos tempos.
Fui às compras, sem comprar. Lembrei-me que comprar trapos e pechisbeque não é assim uma vingança tão boa, como durante anos servi fria.
Fui à terra e fiquei sossegada. Nem um gin "éfe érre á", nem nada. Nem uma saída à noite para ver os rapazes giros de Farmácia (eu sempre achei que os rapazes do curso de Farmácia eram os mais giros, não me perguntem porquê). Neste fim-de-semana estive velha para isso. Lembrei-me que sentir-me velha para certas coisas, às vezes, não é de tótó.

Fui à terra e fiquei sem guião. O mistério da vida é não decorar papéis. Basta lembrar.

3 comentários:

lobo-temia disse...

a terra é um estado de sítio. tenho dito. têm dito por aí.

que longas sejam as horas agonizantes do carroçel das aldeias e cidades pré-destino.
ao menos, que longas sejam as horas.

o guião vem (sempre) formatado para ser enrolado no bolso.

The Sock Gap disse...

Foste ao estádio na jornada certa. E o futebol não é uma coisa assim tão má, não. Muitas vezes o "outro lado" é que não desperta o interesse mediático. Como o convivio entre os adeptos do Belenenses e da Académica que aconteceu antes e após a partida. Provavelmente se tivesse andado tudo ao estalo até abria noticiários. PS: Na próxima vez que for a Coimbra pergunto-te pelo "Café do Aires", o estabelecimento favorito do Bruno Aleixo.

Mc Ako disse...

banda sonora: the handsome family - singing bones. só não casa bem com os rapazes de farmácia.